História e Trabalho.
O TRT 6ª Região e a UFPE: Memória e Pesquisa Historiográfica[i]
Prof. Dr. Antonio Torres Montenegro. (UFPE)
Introdução:
Quando em 2004 um grupo de professores do Programa de Pós-Graduação em História tomou conhecimento que um grande lote de processos trabalhistas iria ser incinerado e iniciou uma peregrinação pelo salvamento dessa documentação, não seria capaz de imaginar que essa iniciativa se associaria a outros movimentos semelhantes em plano regional e nacional. Este gesto em defesa do salvamento dessa preciosa documentação da história do trabalho recente em Pernambuco e da própria história da justiça do trabalho no estado resultou na assinatura de um convênio entre a UFPE e o TRT 6ª Região que na época teve o irrestrito apoio do presidente em exercício, Dr. Fernando Cabral. Na oportunidade, foram transferidos para o Departamento de História da UFPE 63.386 mil processos. Essa pequena quantidade de processos, se comparados com os mais de 2 milhões existentes no arquivo geral, na cidade de Vitória de Santo Antão[ii], constituiu-se em uma documentação preciosa para mestrandos e doutorandos do PPG em História da UFPE, como também para pós-graduandos de outros programas dentro e fora desta Universidade. Por meio deles foi possível adentrar, de forma mais detalhada e com maior riqueza de informações, no âmbito das disputas trabalhistas que ocorreram em Pernambuco a partir da década de 1940. Mas, também, se abriu um enorme leque de possibilidades de pesquisas sobre o mundo social, cultural e político que foi sendo revelado por meio das narrativas que se constituíram nas peças de acusação, defesa e as sentenças desses processos.
No entanto, o novo desafio que tem se colocado para esse grupo de professores pesquisadores do Programa de Pós-Graduação e do Departamento de História da UFPE, juntamente com alunos da graduação, do mestrado e do doutorado, é o de higienizar, catalogar, e informatizar todo essa documentação de forma que ela se torne acessível a qualquer pesquisador. É de conhecimento público a importância da preservação da memória de uma sociedade, pois só por meio dela é possível não só aprender com o passado, mas construir outras formas de entendimento do presente. As experiências históricas vivenciadas em Pernambuco, no período contemplado por uma significativa parcela dessa documentação do TRT 6ª Região, produziram importantes ressonâncias no campo da justiça do trabalho, em razão das atividades do setor portuário, do comércio e do têxtil; por outro lado, a partir de meados da década de 1950 ganharam proeminência as disputas no meio rural, lideradas pelas Ligas Camponesas e que tiveram também como importante conquista, a ação do estado a favor dos trabalhadores, que culmina com o conhecido acordo do campo, assinado pelo governador Miguel Arraes de Alencar, em seu primeiro mandato antes do golpe civil-militar de 1964.[iii]
Pesquisar os processos arquivados na Justiça do Trabalho é conhecer uma outra dimensão da luta que os trabalhadores desenvolveram em Pernambuco, sobretudo, porque há alguns anos vimos tendo acesso a documentação do DOPS - PE que revela a intensa perseguição policial em que os trabalhadores tornavam-se alvos fáceis, - por serem nomeados de comunistas - ao reivindicarem seus direitos trabalhistas.[iv]
Hoje a UFPE e o TRT 6ª Região estão juntos num movimento de preservação da memória da Justiça do Trabalho que adquire dimensões nacionais, haja vista a criação de Centros de Memória dos TRTs em estados como Rio Grande do Sul e Minas Gerais, entre outros.
Entretanto os pesquisadores da UFPE enfrentavam um grande problema para realização das suas pesquisas. Os processos por não se encontrarem preparados para uso dos pesquisadores (higienizados, catalogados e digitalizados) se constituíam numa documentação de difícil manuseio, porque exigia do pesquisador horas e dias a fio na luta para encontrar informações históricas que atendessem aos seus projetos. Além disso, devido a má conservação do papel, mergulhar naquele mundo de processos sem um mínimo de informações prévias, além do perigo da exposição aos fungos que normalmente se desenvolvem nos papéis velhos, desafiava a saúde, a paciência e a sorte do pesquisador para encontrar processos que contemplassem os temas históricos tratados em suas dissertações e teses.
Essa situação, no entanto, foi finalmente revertida quando no final de 2007 a Fundação de Amparo a Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE) lançou um edital Multiusuários: de Apoio para a Disponibilização para a Pesquisa de Laboratório Multiusuários e de Acervos de Interesse Científico para a Pesquisa. Ao concorrermos a esse edital e sermos selecionados, os recursos então alocados possibilitaram constituir uma equipe de estudantes da graduação e do mestrado em história para higienizar, catalogar, (escrever ementas sobre o conteúdo de cada processo) e, em seguida digitalizá-los[v]. Também os recursos permitiram a compra de material específico para conservação, armazenagem e uso dos documentos (câmeras, estantes de aço, ar-condicionador etc.) e tornou possível triplicar o número de processos recebidos que passou de 63 mil para aproximadamente 200 mil, hoje sob a guarda da Pós-Graduação e do Departamento de História da UFPE.
Caminhos da pesquisa:
Realizadas essas considerações introdutórias, para alguns que lêem esse artigo e atuam fora da área da História, a pergunta mais importante ou central, talvez, seja a que questiona como esses processos trabalhistas atendem ao interesse do historiador?
Para adentrar este campo de indagações, destacando o ofício do historiador, escolhi para esta análise histórica o processo de um trabalhador rural – Antonio Cordeiro Gomes – que interpela na justiça do trabalho o proprietário – Alfredo Guerra – do Engenho Serraria, em que trabalhava e era morador, localizado na cidade de Vitória de Santo Antão. Admitido em 5 de agosto de 1959, foi demitido em 18 de julho de 1964. Por não aceitar a forma como o proprietário do engenho o demitiu, cobrou na justiça indenização pela demissão, férias, 13º salário e aviso prévio. A justificativa do proprietário para a demissão por justa causa desse trabalhador e mais cinco outros empregados foi apresentada à justiça baseada nos seguintes argumentos:
Esses empregados “vinham promovendo agitações e dificultando a administração do engenho, inclusive levando para a sede do engenho o conhecido agitador Luiz Serafim, a fim de que este fizesse pregações revolucionárias e anticonstitucionais, tendo por ocasião da prisão de um desses empregados, outro conhecido agitador, Luiz Gonzaga, preso pela polícia e pelo próprio Exército, convidou os demais companheiros de trabalho a fazerem uma greve de solidariedade, tendo paralisado ele, reclamante, juntamente com os demais empregados demitidos, parte das atividades agrícola da propriedade do reclamado, não a paralisando, totalmente, por não haver apoio dos demais trabalhadores, que não estavam de acordo com a pretensão do reclamante e dos seus companheiros demitidos na mesma ocasião; diante disse o reclamado espera que essa MM.. Junta de Conciliação, julgue improcedente a reclamação, por ter apoio na lei a resolução do contrato de trabalho pela falta grave cometida, e por ser, assim ilegal a presente reclamação. Espera Justiça.[vi]
Esse trecho inicial da contestação do proprietário Alfredo Guerra ao pedido de indenização, férias, 13° mês e aviso prévio por parte do trabalhador Antonio Cordeiro Gomes e o grupo de cinco trabalhadores, demitido juntamente com ele, revela como as questões políticas do período se constituíam em argumento fundamental para a efetivação destas demissões. No entanto, as expressões ou termos de conotação política que o proprietário procura impingir aos trabalhadores só adquirem significado quando se retoma historicamente os referenciais de esquerda e direita daquele período histórico e, no nível internacional, a guerra fria. Os trabalhadores são acusados de fazerem agitações – embora não se identifique o que efetivamente significa fazer agitações; de convidarem outro trabalhador, também nomeado de agitador, para fazerem pregações revolucionárias; embora também o significado do termo revolucionário não seja apresentado; e por terem chamado os demais trabalhadores a fazerem uma greve de solidariedade, em protesto contra a prisão pelo exército de um outro trabalhador – Luiz Gonzaga – que também afirmava ser um conhecido agitador. Dessa forma, acusações de cunho político – agitação, agitador, pregações revolucionárias e greve de solidariedade – são relacionadas ao universo do trabalho, como se a simples associação desses termos àqueles trabalhadores, justificasse o não cumprimento das obrigações trabalhistas por parte do patrão.
Surpreende, ao prosseguir a leitura do processo, como o proprietário, Alfredo Guerra, ao ser interrogado pela Junta, diz não ter condições de afirmar se o reclamante fazia agitação com outros trabalhadores em sua propriedade. Embora este tenha sido um dos argumentos centrais apresentados, para justificar a demissão por justa causa, apresentado pelo proprietário na contestação. Por outro lado, o interrogatório revela ainda como não há por parte da Junta, um pré-julgamento das Ligas Camponesas, pois indaga ao proprietário se ele tem conhecimento de alguma proibição de funcionamento das Ligas Camponesas por parte do governo antes da revolução de 31 de março de 1964, e este responde que não sabe; e acrescenta que o delegado de Polícia não proibia a atividade das Ligas Camponesas antes daquela data. Dessa forma, é possível perceber que ao interrogar o proprietário, a própria Junta de Conciliação e Julgamento aponta a atuação das Ligas Camponesas como uma atividade realizada dentro da legalidade constitucional até 31 de março de 1964, e, dessa forma, de certa maneira invalida ou minimiza o argumento do caráter político apresentado na contestação do proprietário para não cumprir com os direitos trabalhistas requeridos pelo trabalhador Antonio Cordeiro Gomes e o grupo demitido. [vii]
Em seguida foi ouvido o trabalhador demitido Antonio Cordeiro Gomes, que afirma:
“faz cinco anos que foi admitido nos serviços do reclamado; que foi demitido no dia 20 de junho do corrente ano; que o último salário foi de Cr$ 1.100,00 por dia, que era trabalhador na propriedade reclamada, trabalhando na enxada; que o reclamado não informou ao reclamante porque motivo o demitia; que não recebeu o pagamento do 13º mês referente ao ano de 1963, com referência ao ano de 1964 nada recebeu; que não houve greve na propriedade reclamada; que pertence ao sindicato rural; que uns 15 trabalhadores todos os trabalhadores da propriedade reclamada são sindicalizados; que o reclamante não provocou nenhuma agitação na propriedade reclamada; que o reclamante trabalhava 8 horas por dia; que o reclamante foi convidado a pertencer as Ligas Camponesas, chegando a dar o seu nome, mas a conselho de sua genitora não contribuiu para as Ligas Camponesas e desistiu de filiar-se a mesma; que 17 trabalhadores da propriedade são filiados às Ligas; que o administrador da propriedade reclamada, de nome Tito Ferreira, pertencia às Ligas Camponesas, sendo o 1º a filiar-se às mesmas; que o administrador não aconselhava aos trabalhadores a filiar-se às ligas, mas não proibia tomarem parte como seus associados; que o delegado das Ligas Camponesas era o Sr. Luiz Gonzaga e o fiscal era Manoel Izídio; que após a revolução de 31 de março o reclamante não foi preso nem chamado à Polícia; que só em junho recebeu autorização da reclamada para deixar os serviços de sua propriedade do Engenho Serraria; que trabalhava seis dias por semana; que nos primeiros 3 anos que trabalhou para a reclamada trabalhava seis dias; que depois dos 3 anos passou a trabalhar 3 a 4 dias, porque o administrador informara estar faltando serviço; que o reclamante tanto trabalhava por diária com por tarefa; que as Ligas Camponesas de Vitória de Santo Antão não estão funcionando depois da revolução e foram fechadas pelas autoridades da Polícia; que não sabe informar o motivo porque fecharem as Ligas Camponesas; que apenas foi uma vez às Ligas Camponesas; que o reclamante foi acompanhado do Sr. Tito Ferreira, administrador da propriedade reclamada e mais o Sr. Izídio, Luiz Gonzaga, Antônio Sabino; que nesta ocasião não estava presente o Sr. Luiz Serafim; que o Sr. Luiz Serafim esteve na propriedade reclamada, a fim de dispensar o reclamante e outros trabalhadores a mandado do reclamado, que não podia comparecer ao engenho; que o Sr. Luiz Serafim ‘é um grandão do Exército’; que retificando disse que o Sr. Luiz Serafim a quem se refere é o Sr. Luiz Queiroz, uma vez que se equivocou no nome; que não estava presente quando o agitador Luiz Serafim esteve na propriedade reclamada; que não acompanhou os outros trabalhadores que invadirem o Engenho Serraria e não sabe quem tomou parte nesta invasão; que não sabe informar nada a respeito do dia em que o agitador Luiz Serafim esteve na propriedade do reclamado; que o trabalhador Manoel Izídio não foi preso, foi apenas preso o Sr. Luiz Gonzaga; que o pagamento dos salários da propriedade reclamada eram feitos por semana, todas as sextas-feiras; que no dia em que não trabalhava no engenho do reclamado ficava trabalhando em sua roça; que possui umas 20 contas de roça; que o reclamante, após sua demissão, ainda não desocupou a casa da propriedade porque não tem como ir morar; que não sabe que tem um prazo de trinta dias para desocupar a citada casa; que as suas lavouras foram avaliadas por um morador na propriedade reclamada em Cr$ 250.000,00, mas que diz que só pode vendê-la por Cr$ 500.000,00; que não paga aluguel do terreno ocupado pelas suas lavouras porque tinha por obrigação prestar serviço ao reclamado, trabalhando seis contas por semana; que não paga aluguel da casa que mora porque os trabalhadores também não pagam, uma vez que sendo trabalhador do reclamado tem direito de morar em casa.”[viii]
Ao ler as respostas – que o trabalhador e o proprietário deram a Junta, quando interrogados – é possível estender diversos fios que projetam sinais, signos e práticas representativas de muitas histórias instituídas a partir da relação proprietário, trabalhador rural, Justiça do Trabalho e as forças policiais e do Exército após o golpe civil militar de 31 de março de 1964. Opto inicialmente por analisar a questão da sindicalização rural e a filiação às Ligas Camponesas que neste relato se apresentam como uma prática que, ao que tudo parece, havia se ampliado de forma significativa no meio rural de Pernambuco, ou pelo menos em algumas áreas deste estado. Sobretudo quando se tem a de informação de que os sindicatos rurais passaram a ter uma atuação mais efetiva a partir de 1962[ix]. Também, nesse relato aparece outro aspecto muito revelador em relação às condições salariais dos trabalhadores rurais nos engenhos em Pernambuco. Ou seja, estes tinham direito a um pedaço de terra e a moradia, como parte do seu contrato de trabalho. No entanto, isto não significava que não fossem assalariados, já que tinham direito a 13º mês, férias e indenização se despedidos sem justa causa. Seus salários tanto eram calculados por dias trabalhados (regime de diárias) como por tarefa realizada. No que tange a filiação às Ligas, não são apenas os processos trabalhistas que possibilitam perceber o quanto estas penetram no meio rural, produzindo a filiação autônoma do trabalhador, pois a contribuição mensal às Ligas é voluntária. Também em documentos do DOPS-PE é possível perceber condições de trabalho idênticas à descrita nos processos trabalhistas, em que os trabalhadores rurais são apresentados como filiados as Ligas Camponesas[x]. Assim, mesmo que a Liga Camponesa mais conhecida seja a do engenho Galiléia, sobretudo pelo fato de seus membros terem conquistado a desapropriação, ainda no ano de 1959, e os trabalhadores estarem submetidos ao regime do foro rural, nos anos subseqüentes muitas Ligas foram fundadas e passaram a fazer o papel de sindicato rural. Organizavam e defendiam os direitos trabalhistas de um número incalculável de trabalhadores rurais, submetidos as mais diferentes formas de contrato de trabalho, e não apenas daqueles que arrendavam a terra – foreiros, parceiros, rendeiros, meeiros, eiteiros entre outros – como alguns autores costumam afirmar[xi].
Um último aspecto que quero pontuar nessa resposta do trabalhador Antonio Cordeiro Gomes, quando interrogado pela Junta, refere-se à justificativa que apresenta por não haver desocupado a casa em que morava no engenho Serraria. Embora o direito a moradia seja uma prática comum naquela parte do estado, naquele período, a lei exigia que quando demitido o trabalhador desocupasse a casa em 30 dias. Antonio Cordeiro Gomes então afirma que não tinha essa informação, mas que ainda não havia desocupado porque não tinha onde morar. Essa resposta revela um fenômeno social de enorme amplitude para a vida de milhares de homens e mulheres trabalhadoras. Ou seja, o processo trabalhista apresentado é revelador de um movimento de maior amplitude – como diversas outras pesquisas já haviam apontado –, ou seja, a transformação das relações de trabalho no meio rural, especialmente naquele território dominado pelo plantio da cana de açúcar. A medida que as relações de trabalho se estabelecem no plano da compra e venda da força de trabalho – ou seja, do estrito assalariamento – trabalhadores como Antonio Cordeiro Gomes e o grupo com ele demitido, e, provavelmente, trabalhadores em muitos outros engenhos em Pernambuco, não terão mais direito a moradia e serão obrigados a construir barracos nas periferias das cidades ou migrar para viver nas favelas do Recife. Dessa maneira, a Justiça do Trabalho que pode até protegê-los da demissão arbitrária e violenta, não oferece alternativa de moradia para o trabalhador e sua família.
A palavra das testemunhas:
A primeira das testemunhas da defesa, o trabalhador João Manoel da Silva, afirmou não ter visto nem ouvido que Antonio Cordeiro Gomes agitava os trabalhadores, mas que ouviu falar que ele "tirava contas corretamente" e "prestava conta de sua tarefa", que sempre o via trabalhando "em tirar cana às margens da estrada, na propriedade do reclamado, cuja plantação era feita das margens para o centro da propriedade e que o reclamante nem parava para conversar com ele depoente". A segunda testemunha da defesa, o trabalhador Amaro Ribeiro de Araújo disse que Antonio Cordeiro Gomes "foi dispensado porque pertencia às Ligas Camponesas e que o mesmo entrou nas referidas Ligas porque foi iludido", que não houve greve na propriedade do reclamado, e que ele era bom trabalhador. E mais: "que não era proibido que os trabalhadores fizessem parte das Ligas Camponesas, que não assistiu à palestra do Luís Serafim quando foi ao engenho". E ainda: "que o administrador da reclamada fazia parte das Ligas e mandava que os demais trabalhadores também fizessem parte e que o administrador mandava que os trabalhadores entrassem nas Ligas, do contrário não recebiam serviços." Que nada mais sabia informar "se as Ligas Camponesas foram fechadas por atos subversivos e que o depoente não fazia parte das referidas Ligas". E que Antonio Cordeiro Gomes saíra das Ligas a pedido de sua mãe e que não soube informar se este tinha “pleiteado os seus salários sem prestar serviço à reclamada por exercer as funções de fiscal das ligas". A terceira testemunha, disse que Antonio Cordeiro Gomes era uma pessoa trabalhadora, e que o administrador freqüentava as Ligas Camponesas para dar o bom exemplo, e não soube informar se ele era delegado das Ligas Camponesas. [xii]
Todas as três testemunhas de defesa afirmaram que Antonio Cordeiro Gomes era um bom trabalhador, cumpridor de suas obrigações, não era agitador e que não houve greve ou paralisação no engenho Serraria. O elemento novo que surge nesses depoimentos é que ser associado às Ligas Camponesas adquire uma dimensão muito significativa. Possivelmente, porque esse foi o eixo da acusação apresentada pelo proprietário do engenho Serraria para justificar a demissão de Antonio Cordeiro Gomes e mais um grupo de cinco trabalhadores. No entanto, o próprio administrador era filiado às Ligas Camponesas (como reconhecera o proprietário) e no depoimento de defesa – de Amaro Ribeiro de Araújo – este afirma que ele pressionava os demais trabalhadores do engenho para se filiarem.
Pela parte do proprietário Alfredo Guerra, apresentaram-se apenas duas testemunhas. A primeira, o trabalhador rural João de Barros Vasconcelos que reafirmou todas as acusações sustentadas pelo proprietário, sobretudo a de que Antonio Cordeiro Gomes convidara o Sr. Luiz Serafim para promover comícios e incitar greve no engenho; porém, algumas vezes entrou em contradição com a própria declaração do proprietário ao dizer que o administrador não era filiado às Ligas. E encerra seu depoimento afirmando que Antonio Cordeiro Gomes fora demitido apenas por pertencer as Ligas. A forma como esta testemunha respondeu às perguntas da Junta de Conciliação e Julgamento, talvez tenha induzido esta a indagar se ele não tinha sofrido qualquer tipo de ‘insinuação’ por parte do proprietário, ao que o mesmo respondeu que não. A segunda testemunha, o trabalhador Amaro Carneiro disse ter visto Antonio Cordeiro Gomes ateando fogo no canavial do engenho Serraria juntamente com outros trabalhadores. Que essa prática era do conhecimento de diversos trabalhadores. Porém, logo em seguida, no mesmo depoimento afirma que estava enganado, ou seja, "equivocou-se ao indicar o reclamante como incendiário". Não temos acesso aos autos para averiguar sobre qual a pergunta ou a razão pela qual se fez esta pergunta à testemunha, após acusar o colega de incendiário, e voltar atrás para simplesmente dizer que era um equívoco. Também informou que o administrador "filiou-se às Ligas por coerção de Antonio Cordeiro Gomes". E que "depois da revolução este voltou a agitar" e que não foi preso porque se foragiu, evitando uma viatura da Rádio Patrulha que esteve no engenho procurando pelo mesmo[xiii].
Ao se concluir a leitura do depoimento das testemunhas de acusação, é possível perceber como a motivação política é novamente a principal referência utilizada para desqualificar o trabalhador Antonio Cordeiro Gomes e, dessa forma, justificar sua demissão por justa causa. No entanto, ter pertencido as Ligas Camponesas (embora nem isso tenha sido possível provar de maneira efetiva), não se constituiu como argumento aceito pela Junta de Conciliação e Julgamento para o não cumprimento das obrigações trabalhistas por parte do proprietário Alfredo Guerra. Afinal, como informou a Junta, as Ligas eram uma entidade civil inteiramente legal.
Em face do que se lê no processo, não foi difícil para o advogado de defesa, Josué Custódio de Albuquerque, desfazer qualquer relação entre seu cliente e o adjetivo de agitador, ou que ser filiado as Ligas justificasse sua demissão por justa causa, visto que mesmo após a “revolução de 31 de março de 1964” , seu cliente continuou a trabalhar até junho do mesmo ano. Além do mais, o simples motivo de ser filiado às Ligas Camponesas, "consideradas atualmente como órgão subversivo" não constituiu justa causa, visto que o mesmo órgão era apoiado e defendido tanto pelo governo do estado como pelas autoridades federais, e que, por fim, "não se pode atribuir ao simples trabalhador rural a agitação do campo", concluiu o advogado.
Já o advogado do proprietário do engenho o Dr. José Ivo de Carvalho Aroucha reafirmou que nos autos estaria comprovado como a rescisão do contrato do trabalhador por justa causa deveria ser mantida, pois estariam provados os reiterados atos de indisciplina e insubordinação dos trabalhadores.
Polícia e trabalho:
Concluída a etapa do julgamento, em que se ouviram as testemunhas da parte do trabalhador e da parte do proprietário, após as considerações dos respectivos advogados e não havendo possibilidade de conciliação, foi marcada uma nova audiência que se realizaria no prazo de cinco dias.
Na fase do processo, em que se passou a ouvir as duas testemunhas do proprietário (João de Barros Vasconcelos e Amaro Carneiro) a Junta, que vinha sendo presidida pela Juíza do Trabalho Dra. Irene de Barros Queiroz, passou então a ser presidida pelo Juiz do Trabalho Dr. Aloísio Cavalcanti Moreira. Não é possível avaliar se essa mudança de presidência na Junta significou alguma alteração na perspectiva de encaminhamento do julgamento, por não se ter maiores informações sobre a perspectiva ideológica desses magistrados.
No entanto, encerrada essa fase do processo o Juiz Presidente da Junta Dr. Aloísio Cavalcanti Moreira solicitou diligências. Ou seja, uma verificação fora dos autos, que seriam realizadas segundo consta no processo, junto ao IV Exército, a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco e a Delegacia de Polícia de Vitória de Santo Antão em busca das seguintes informações: a) se qualquer inquérito instaurado em decorrência da revolução de 31 de março de 1964 apurou-se atividade subversiva do reclamante (entenda-se o trabalhador Antonio Gomes Cordeiro) no engenho do reclamado (entenda-se do proprietário Alfredo Guerra); b) se há qualquer registro de movimento subversivo no engenho Serraria, pertencente ao reclamado após a revolução de 1964 e, em caso afirmativo, em que data. Disse ainda o Juiz Presidente que, sendo notória, a participação, tanto do Exército como da Polícia Civil no combate as atividades contrárias ao regime e à propriedade privada, a resposta de qualquer daquelas autoridades será suficiente para o fim de completar a instrução processual. [xiv]
A diligência requerida pelo juiz presidente da Junta diz respeito ao que ele denomina ‘atividade subversiva’ e a existência de qualquer inquérito acerca desse tipo de atividade que tenha ocorrido após o que ele nomeia de “revolução de 31 de março de 1964” . Ou seja, só há interesse em investigar o que se designa atividade subversiva após o golpe civil militar de 1964. O que se entende que antes dessa data, as atividades nomeadas subversivas, não existissem, ou não tivessem essa denominação. Deseja saber ainda se há registro de atividade nomeada subversiva no engenho Serraria após 31 de março do corrente ano. E, para finalizar, afirma o magistrado que a Polícia Civil e o Exército participam do combate às atividades contrárias ao regime e a propriedade, e, portanto, que as respostas das autoridades daqueles órgãos eram suficientes para completar a instrução processual. Dessa forma, se compreende como, após “31 de março de 1964” qualquer atividade considerada contrária ao regime e mesmo à propriedade privada passava a ser objeto de investigação do Exército e da Polícia. E mais ainda, que as autoridades daqueles órgãos do estado poderiam ‘completar’ a instrução do processo trabalhista em tela. Assim , algum inquérito levado a efeito pelo Exército ou pela Polícia Civil deveria alterar o presente processo trabalhista.
Dessa forma, a Junta de Conciliação e Julgamento de Jaboatão encaminhou, em 16 de fevereiro de 1965, ofícios ao IV Exército, a Delegacia de Polícia de Vitória de Santo Antão e a Secretaria de Segurança Pública de Pernambuco solicitando informações que atendessem a diligência do presente processo trabalhista. Na data prevista para a nova audiência (10 de março de 1965), apenas havia sido recebida a resposta da Delegacia de Polícia de Vitória de Santo Antão. Nesta, no qual o major delegado afirma que nada consta naquela delegacia acerca de atividade subversiva contra Antonio Cordeiro Gomes, bem como nenhum registro de movimento subversivo no engenho Serraria após a “revolução de 31 de março de 1964” . [xv] No entanto, a audiência do dia 10 de março foi adiada para o dia 30 de março de 1965, por não haver chegado as respostas do IV Exército e da Secretaria de Segurança Pública. Mas na nova data da audiência, faltava ainda chegar a resposta da Secretaria de Segurança Pública, o que produziu um novo adiamento para o dia 27 de abril de 1965.
A resposta do IV Exército à Junta, depois do envio de um segundo ofício solicitando informações, (o primeiro no dia 16/02 e o segundo no dia 25/02 de 1965), possibilita uma leitura que revela as relações de poder institucional que estão sendo construídas entre o Exército e outras instâncias de poder do Estado. O ofício resposta inicia com o Chefe do EM do IV Exército incumbindo a outro oficial responder a solicitação do Juiz Presidente da JCJ de Jaboatão, informando que: qualquer registro nos arquivos do Estado Maior desta Grande Unidade tem finalidade de uso interno e, somente em caso de evidente interesse do Exército, será fornecido a outras organizações. No caso, parece-nos, as informações poderiam ser solicitadas à Secretaria de Segurança Pública. O IV Exército não realizou IPM específico para apurar irregularidades em nenhum engenho neste ou noutro Estado.[xvi] É revelador que o Chefe do IV Exército (General Valter Menezes Paes) não responde diretamente ao Juiz Presidente da JCJ, mas nomeia um subalterno para fazê-lo. Por outro lado, no ofício resposta o IV Exército informa que esta instituição não tem nenhuma relação de colaboração com a Justiça (que nomeia de organização), ou seja, as informações que por acaso detivessem apenas seriam fornecidas caso fosse do interesse do Exército. Assim sendo se conclui que o interesse do Exército está acima dos interesses da Justiça e, portanto do próprio Estado. Mas em seguida, como se lê, instrui a JCJ a como agir nessas situações, ou seja, deveria buscar esse tipo de informação junto a Secretaria de Segurança Pública. E, por fim, informa que o Exército não realizou IPM em nenhum engenho de Pernambuco ou de outro estado, o que deixa claro que a Junta não deveria buscar em definitivo esse tipo de informação junto àquela Força. Dessa maneira, se encerra a colaboração do IV Exército à diligência encaminhada pelo Juiz Presidente Dr. Aloísio Cavalcanti Moreira.
A juíza Irene de Barros Queiroz reassume a presidência da JCJ de Jaboatão, retornando à sua alçada o julgamento do referido processo. Solicita novamente à Secretaria de Segurança de Pernambuco as informações anteriormente requeridas. No entanto, como não obtém resposta daquela Secretaria, na audiência do dia 27 de abril, decide dar prosseguimento ao processo, considerando que as informações fornecidas pela Delegacia de Vitória de Santão Antão seriam consideradas suficientes, e, dessa forma, encerra a fase de instrução do processo. É marcada a data de 07 de maio para o julgamento. Como o proprietário nem seu representante compareceram a presente audiência não houve possibilidade de conciliação.
Na audiência do dia 7 de maio, a juíza presidente, após relatar o processo e colher os votos dos vogais, pronunciou a sentença, em que por votação unânime foi julgada procedente a reclamação de Antonio Cordeiro Gomes contra Alfredo Guerra. Dessa forma, o trabalhador demitido teria direito a Cr$ 165.000.00 de indenização; Cr$ 66.000.00 de férias; Cr$ 19.250.00 correspondente a 7/12 avos do 13º do ano de 1964 e Cr$ 33.000.00 de aviso prévio. E mais juros de mora e custa do processo no valor de Cr$ 5.991.00 a serem pagos pelo proprietário.
O processo iniciado em 10 de novembro de 1964 tem finalmente sua primeira sentença proferida e em seguida publicada em 10 de maio de 1965. Em todo esse período, no qual foram realizadas oito audiências (além de duas canceladas), exigindo gastos com passagens, o envolvimento com o processo resultou para o trabalhador demitido injustamente, o valor total de Cr$ 283.250.00. Um valor bem menor do que os Cr$ 500.000.00 que afirma valer seu roçado no engenho Serraria de propriedade de Alfredo Guerra. Ou pouco mais da metade do valor que outro morador avaliou sua roça, no valor de Cr$ 250.000.00. Se considerar que do valor de Cr$ 283.250.00 ainda terá talvez que abater o pagamento dos serviços advocatícios em torno de no mínimo 10% do valor total, restará então líquido a Antonio Cordeiro Gomes Cr$ 254.925.00. Normalmente estes 10% seriam pagos pelo proprietário (que foi condenado nos autos), caso o advogado do trabalhador fosse do sindicato. No entanto, essa informação não é apresentada nos autos.
Labirintos da Justiça:
O trabalhador rural Antonio Cordeiro Gomes teve sua moradia desocupada no engenho Serraria como recomendava a lei? O processo não informa. Provavelmente sim. Onde passou a morar com a sua família? Também essa informação os autos não dão. Será que conseguiu trabalho em outro engenho, com direito a moradia, tendo colocado o antigo patrão na justiça? Deve ter se tornado difícil naquela região. Também não há informação se conseguiu colher sua roça e vender na feira ou a algum atravessador negociante. O que se tem de seguro é que se mostrou uma pessoa determinada, pois não deixou de comparecer a nenhuma audiência.
Entretanto a batalha não estava ganha. Apesar da decisão unânime da Junta de Conciliação e Julgamento de Jaboatão ter lhe dado uma sentença inteiramente favorável, em 11 de junho de 1965, o proprietário Alfredo Guerra entrou com um recurso ordinário para o colendo Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região, tendo em vista, segundo o mesmo, que a decisão teria sido proferida ao arrepio da prova dos autos e do direito.[xvii]
Nas razões apresentadas no recurso ordinário, o recorrente repete as mesmas acusações já apresentadas anteriormente, além de procurar responder a insuficiência ou a inexistência de provas, apontadas pela JCJ de Jaboatão. Nesse aspecto alega que: O fato de não haver registro nos arquivos da delegacia auxiliar, nem de haver inquérito contra o reclamante, não significa que ele seja bom trabalhador, que ele não tenha cometido falta grave prevista na C.L.T. ou no E.T.R., in casu. Além do mais, muitos trabalhadores que agitavam o campo, que ocupavam propriedades rurais, que impediam os companheiros de trabalhar, não foram processados, nem tiveram seus nomes envolvidos em inquéritos policiais, talvez devido as suas condições de trabalhadores rurais, sem grande influências nos governos, quando havia necessidade de processar os maiorais, os cabeças.[xviii]
O argumento inicial do recurso ordinário revela como outra vez o proprietário busca na motivação política a razão fundamental para justificar a demissão por justa causa, embora não apresente nenhuma prova que consubstancie seu argumento, como exige a Justiça. Surpreende ainda, no recurso apresentado, a reprodução que realiza dos depoimentos das suas testemunhas, trabalhadores do seu engenho, João de Barros Vasconcelos e Amaro Carneiro, que cometeram significativas contradições. O primeiro afirmando que o administrador Tito Ferreira não era filiado às Ligas Camponesas, quando o próprio Alfredo Guerra proprietário do engenho Serraria tinha reconhecido perante a Junta a filiação deste às Ligas Camponesas. No entanto, surpresa ainda maior é este insistir em apresentar Antonio Cordeiro Gomes como incendiário de canaviais, quando sua própria testemunha – Amaro Carneiro –, que havia feito esta acusação em seu depoimento, afirmou em seguida que se equivocou e declarou que Antonio Cordeiro Gomes não era incendiário.
Em 22 de junho de 1965, foi encaminhada uma notificação a Antonio Cordeiro Gomes para, no prazo de dez dias, apresentar uma resposta ao recurso ordinário então encaminhado ao egrégio Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região. Em 5 de julho o advogado Josué Custódio de Albuquerque exibe as contra razões ao recurso ordinário interposto pelo proprietário do engenho Serraria. Nas “Razões do Recorrido” para utilizar um termo jurídico, foi relativamente fácil ao advogado solicitar ao Tribunal a manutenção integral da sentença, pois os argumentos de indisciplina, de não cumprimento das tarefas, de incitamento a greve entre outras acusações não se sustentam em provas. Além do mais, como alega o advogado, ter pertencido as Ligas Camponesas no passado, não se consubstancia em crime, pois era uma entidade legal.
No dia 17 de julho, o procurador regional Ruy do Rego Barros, após receber os autos, dá um parecer inteiramente favorável a Antonio Cordeiro Gomes, recomendando que a sentença da primeira instância seja confirmada. Afirma ainda o procurador que o proprietário não conseguiu provar ter o trabalhador cometido faltas graves, que lhe quis imputar. Além do mais, ainda segundo o procurador, as testemunhas favorecem ao trabalhador bem como as informações prestadas pela Delegacia de Polícia de Vitória de Santo Antão e a Secretaria de Segurança Pública. Dessa forma, opina no sentido de que seja negado provimento do recurso interposto.[xix]
Em 5 de outubro de 1965 o Tribunal Regional do Trabalho 6ª Região, em sessão ordinária, resolveu por unanimidade de acordo com o parecer da Procuradoria Regional, negar provimento ao recurso para confirmar a decisão recorrida. Mas só em 16 de março de 1966 a conclusão do acórdão foi publicada no Diário Oficial.
Em 30 de março de 1966 o proprietário Alfredo Guerra requereu que o presente Recurso de Revista seja processado na forma da lei, a fim de que o colendo Superior Tribunal do Trabalho reconheça a divergência entre os julgados e a inobservância da lei, reformando a decisão recorrida.[xx]
No entanto, o pedido de revista foi negado e em 27 de setembro de 1966 o trabalhador rural Antonio Cordeiro Gomes recebeu o valor de Cr$ 283.250, como indenização por sua demissão sem justa causa.
História, Trabalho e Justiça:
A leitura e o acompanhamento dos registros que chegam até os dias de hoje, por meio do presente processo trabalhista, possibilitam algumas reflexões históricas. Num primeiro plano, poder-se-ia destacar como a intensa luta por direito a terra e a defesa dos direitos trabalhistas implementados por vários setores da sociedade civil até 1964, após o golpe civil militar, são nomeados de subversão e incitamento a desordem e passam a ser tratados como caso de polícia. Em outros termos, a mesma luta por direitos e a filiação às Ligas passam a ser nomeadas de agitação e desrespeito a ordem, como está registrado nos próprios autos transcritos neste texto; a análise histórica tem como foco primordial as relações, os percursos, as práticas, porque através do seu estudo é que se poderão construir outras formas de compreensão, que desnaturalizem a relação ou a representação que procurava associar de forma unívoca o objeto ou a coisa à palavra. Ou, ainda, como esse movimento de desnaturalizar as palavras revela um combate, uma luta na história, um desfazer de laços e armadilhas que trazem embutido o controle constante sobre a vida e o fazer dos trabalhadores pobres e, por que não dizer, de todos nós.[xxi]
É possível compreender como a Justiça do Trabalho irá, ela própria, acionar as instâncias da Polícia e do Exército, para materializar esse novo padrão de julgamento, em que a luta por direitos trabalhistas será reconhecida e nomeada de subversão e contrária ao novo ordenamento político instituído após o golpe civil militar de 1964. Ao mesmo tempo, a Justiça do Trabalho se constituirá num espaço de direito que contem uma dimensão simbólica bastante significativa da resistência do trabalhador aos arbítrios patronais e mesmo das intimidações policiais, como alguns processos permitem analisar.
Porém, há ainda que se analisar como a Justiça do Trabalho e suas práticas são e não são igual para todos. A leitura do quadro abaixo, onde – em alguns anos – mais de 60% dos processos são arquivados pelo não comparecimento do trabalhador – reclamante –, revela as inúmeras dificuldades deste em acompanhar o longo ritual da Justiça, as inúmeras audiências, os adiamentos. A Justiça opera com uma representação ideal de cidadão, ou seja: uma pessoa alfabetizada, com residência fixa, conhecedor dos seus direitos e deveres. Na medida em que muitos trabalhadores não atendem a esse perfil, torna-se muito difícil acompanhar e fazer valer seus direitos junto a Justiça do Trabalho. É possível que esta seja uma das explicações para o abandono e o arquivamento de um número tão significativo de processos trabalhistas,
RESULTADO DO PROCESSO: ARQUIVADO
ANO / RESULTADO | ARQUIVADO (total de 4.052 processos) | |||
TOTAL | MOTIVO: NÃO COMPARECIMENTO DO RECLAMANTE | |||
Nº | % | Nº | % | |
1963 | 70 | 17,54 | 44 | 65,71 |
1964 | 33 | 12,94 | 17 | 51,51 |
1965 | 33 | 13,69 | 22 | 66,66 |
1966 | 33 | 22,15 | 16 | 48,48 |
1967 | 25 | 10,33 | 12 | 44,00 |
1968 | 101 | 14,33 | 68 | 67,32 |
1969 | 106 | 12,17 | 81 | 76,41 |
1970 | 180 | 26,39 | 99 | 55,00 |
1971 | 73 | 21,60 | 51 | 69,86 |
1972 | 22 | 12,94 | 19 | 86,36 |
TOTAL | 676 | 16,68 (do total de 4.052) | 429 | 63,46 (do total de 676)) |
Fonte: Equipe do Projeto TRT/UFPE com apoio da FACEPE e do NEAD. Coordenado pelo Prof. Antonio Torres Montenegro e pela Profa. Vera Acioli.
Registros, linguagens, relações de trabalho situam-se historicamente e emitem signos abertos a diversas análises que se projetam em nossa contemporaneidade por meio dessa ampla massa documental que são os Processos Trabalhistas, e que vêm se tornando hoje no Brasil alvos de uma importante memória arquivistica.
Bibliografia:
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[i] Este artigo recebeu valiosas contribuições das Profas. Regina B. Guimarães Neto, Vera Acioli e Socorro Ferraz. A elas sou muito grato.
[ii] A cidade de Vitória de Santo está localizada a 45 km da cidade do Recife. É atendida por uma excelente estrada - BR 232 - que permite o acesso a cidade à partir do Recife de maneira rápida e segura.
[iii] ROCHA, Ítalo. In site ABKNET. Em seu primeiro mandato como governador, ampliou o programa de alfabetização de jovens e adultos pobres, estimulou a luta dos trabalhadores rurais da Zona da Mata por direitos trabalhistas, intermediando a negociação entre camponeses e usineiros, que ficou conhecido como o "Acordo do Campo". Por esse pacto, os direitos trabalhistas dos camponeses passaram a ser respeitados, os salários da categoria foram regulamentados e ficaram acima do mínimo.
[iv] MONTENEGRO, Antonio T. História, Metodologia, Memória. São Paulo. Editora Contexto, 2010. Pág. 151/181.
[v] A Coordenação Geral deste Projeto cabe a minha pessoa e tem a professora Vera Acioli como Coordenadora Técnica.
[vi] Processo Trabalhista da Junta de Conciliação e Julgamento de Jaboatão. Processo: 0884/64. Págs. 5/6.
[vii] Processo JCJ 0884/64. Reclamante: Antonio Cordeiro Gomes. Reclamado: Alfredo Guerra. Págs. 9/10.
[viii] Processo JCJ 0884/64. Reclamante: Antonio Cordeiro Gomes. Reclamado: Alfredo Guerra. Págs. 6 à 8.
[ix] MONTENEGRO, Antonio Torres. Ligas Camponesas e Sindicatos Rurais em Tempo de Revolução; In O Brasil Republicano: O tempo da experiência democrática – da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Págs. 267/268.
[x] MONTENEGRO, Antonio Torres. Metodologia, História, Memória. São Paulo. Editora Contexto, 2010. Pág. 156/161.
[xi] Pode-se destacar, entre outros, Antonio Callado e Os industriais da seca e os “Galileus” de Pernambuco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.
[xii] Processo JCJ 0884/64. Reclamante:Antonio Cordeiro Gomes. Reclamado: Alfredo Guerra. Págs. 10 à 16.
[xiii] Processo JCJ 0884/64. Reclamante:Antonio Cordeiro Gomes. Reclamado: Alfredo Guerra. Págs. 17 à 20.
[xvii] Processo JCJ 0884/64. Reclamante: Antonio Cordeiro Gomes. Reclamado: Alfredo Guerra. Pág. 46.
[xviii] Processo JCJ 0884/64. Reclamante: Antonio Cordeiro Gomes. Reclamado: Alfredo Guerra. Pág. 47.
[xx]Idem. Pág.67.
[xxi] MONTENEGRO, Antonio Torres. História, Metodologia, Memória. São Paulo. Editora Contexto, 2010. Pág. 19.
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